Quase um auto-retrato
Aos vinte e poucos anos escrevi: “meu
poema rimou com a minha vida”. Era ainda muito cedo, não sei sequer se é
verdade, embora muitas coisas me tivessem já acontecido: amores, partidas,
guerra, revoltas, "prisões baixas". O que mais tarde me levaria a
dizer: "biografia a mais". Muito antes, lá pelos vinte, tinha lido
uma frase de André Gide que me impressionou. Dizia ele: "a análise
psicológica deixou de me interessar desde o dia em que cheguei à conclusão de
que cada um é o que imagina que é." Até que ponto sou o que me imaginei
ser? Se soubesse pintar (mas não sei) faria o meu auto-retrato a olhar para
ontem, ou para dentro, ou para outro lado. Distraído-concentrado,
presente-ausente, um não sei quê.
Acusam-me de altivez e narcisismo. É sobretudo
reserva, timidez e uma incapacidade física de praticar uma certa forma
portuguesa de hipocrisia e compadrio. Ou talvez um tique que herdei de família:
levantar a cabeça, olhar a direito.
Tenho desde pequeno a obsessão da morte. Não o medo,
mas a consciência aguda e permanente, sentida e vivida com todo o meu ser, de
que tudo é transitório e efémero e não há outra eternidade senão a do momento
que passa. Talvez por isso seja um homem de paixões. Mas não vivi nunca
póstumo, nem me construí literariamente. Sei que nenhum verso vence a morte. E
não acredito sequer na literatura.
Na poesia, sim. Mas como ritmo, como música interior,
canto e encanto, incantação, exorcismo, uma forma de relação mágica com o
mundo. A um professor brasileiro que trabalhava numa tese sobre mim, respondi:
"Escrita e vida são inseparáveis. Embora eu entenda a poesia como
experiência mágica, algo que está aquém e além da literatura."
Penso, como Teixeira de Pascoais, que "o ritmo é
a substância das cousas" e que "a poesia nasceu da dança."
Talvez por isso eu goste de flamenco, a música e a dança que estão mais perto
do ritmo primordial, da batida do coração e da própria pulsação da terra. Gosto
de flamenco e de um certo tipo de fado e dos tangos de Francisco Canaro. E
também de Bach e Mozart. Pelas mesmas razões: o ritmo. E da poesia de Lorca
que, ao contrário de ideias feitas, nada tem de folclórico ou regionalista,
antes se aproxima das energias primitivas e essenciais e é quase, como diria
ainda o autor de Marânus, "um bailado de palavras."
Não sei se, como queria Rimbaud, consegui fazer
"coincidir a essência da poesia com a existência do poema." Cantei,
canto. Demanda, errância. Não há senão esse procurar. Na vida, na escrita.
Quando faço aquilo de que gosto, faço-o intensamente. A pesca, por exemplo. Ou
a viagem. Ou a partilha: um bom jantar em família com alguns amigos, uma
reunião conspirativa, a camaradagem na nunca perdida ilusão de que a revolução
ainda é necessária e possível.
Diria que é outra forma de escrita. Intensa, densa,
tensa. Como o amor. E talvez a morte.
Herdei de minha mãe uma certa energia, o gosto da
intervenção. De meu pai, o desprendimento, uma irresistível e por vezes
perigosa tendência para o desinteresse. Inclusivamente pelos bens materiais.
Não é por acaso que só me prendo realmente ao que poderia chamar as minhas
armas: espingardas propriamente ditas, "gostei muito de caçar", canas
de pesca, carretos, canetas, livros (alguns livros), discos. Os grandes
espaços: o deserto, o Atlântico, o Alentejo. E sítios. Certas cidades. Outrora
agora: Coimbra, Paris, Roma, Veneza, Lisboa. Certos lugares: o Largo do
Botaréu, em Águeda, o rio, a ria (de Aveiro), Barra, Costa Nova. Mais
recentemente: Foz do Arelho, Barragem de Santa Clara. Certos recantos: a minha
casa de Águeda, o solar, já perdido, da minha avó, em S. Pedro do Sul, as casas
da minha tia e meus primos na Anadia, a casa de Sophia, a minha casa em Lisboa.
A minha mulher, os meus filhos, a minha irmã, os meus amigos. Uma grande
saudade dos que morreram, principalmente de meu pai, a quem, por pudor e
reserva (somos parecidos), nunca cheguei a dizer em vida o que gostaria de lhe
dizer aqui.
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